O avatar da consciência

Imagem: Magali Magalhães
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Garantir a posse de Lula da Silva, e a prisão do terrorista oficial responsável pela barbárie social e política

As manifestações de 2013 tiveram início com a demanda contra o aumento das passagens dos ônibus, nas grandes capitais. Em São Paulo, o Movimento Passe Livre (MPL) se opôs ao reajuste de R$ 3,00 para R$ 3,20, que logo deu lugar ao slogan “Não é pelos vinte centavos”. O inominável da República, com o argumento neoliberal de que a economia tem leis próprias, responsabiliza a Petrobrás sob controle do Executivo, e se faz de sonso para a colonialista paridade internacional de preços, criada pelo golpista Michel Temer e mantida pelo dissimulado sucessor, saído dos porões. “A gente era feliz e não tinha consciência?”

A cobertura da mídia corporativa fez um jogral com a oposição, ao apresentar as manifestações como uma reação ao governo Dilma Rousseff, que haveria investido de forma exorbitante e desproporcional nas monumentais construções esportivas da Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016), com vistas às plateias privilegiadas. Em contrapartida, teria alocado quantias modestas para distribuir ao “pobretariado”, além de ignorar temas considerados prioritários de infraestrutura para a educação, saúde e transporte de interesse das massas. A pecha colou, e a aprovação da presidenta que era alta (57%) desceu a ladeira (para 30%) do patriarcado.

A governante foi descrita como preocupada, mais com a imagem do país no exterior, do que com o povo. A pauta dos manipulados protestos parasitados pela “nova direita” se deslocou, das passagens, para a acusação de propinas com a suspeição de superfaturamento nas obras. O governo, atônito com a velocidade das denúncias, virou alvo de escândalos pré-fabricados no Jornal Nacional (JN). “A atenção da mídia proporcionou o palco para os manifestantes apresentarem as queixas a um público de âmbito mundial”, anotou o sociólogo da Universidade de Nova York, James Jasper, no prefácio à edição brasileira do livro Protest: a cultural introduction to social moviments (2014).

Questões morais empolgaram a irrupção “apartidária” que tomou as avenidas, com multidões iradas. Mobilizações gigantescas, com extração na classe média, galvanizaram os participantes para ataques frontais ao Partido dos Trabalhadores (PT). Espalhava-se o antipetismo. Na abertura da Copa do Mundo, a mandatária foi vaiada e xingada em coro por milhares de espectadores, em termos chulos, ao recepcionar delegações estrangeiras no estádio Maracanã. Uma cena misógina.

Era a tempestade no paraíso, que celebrava o pleno emprego. Os salários estavam valorizados. As aposentadorias, vinculadas aos reajustes anuais do mínimo sempre acima da inflação. Havia critérios para o acesso ao Bolsa Família, que garantiam a frequência de crianças e adolescentes nas escolas e exorcizavam o êxodo dos alunos. Os concorridos cursos técnicos e empreendedoristas bombavam. Diaristas, com carteira assinada, tinham filhos formados nas universidades. Gente humilde fazia cruzeiros no Atlântico. A quietude da sociedade se explicava pela melhoria das condições de vida, fruto das políticas públicas governamentais implementadas, no período.

Para James Jasper, os partícipes dos movimentos sociais são: “Pessoas que abrem mão do conforto material, da estabilidade financeira, do tempo com a família, de uma vida normal em favor de projetos morais e táticas arriscadas que parecem ter muita pouca chance de sucesso. Quem são essas pessoas, que com frequência proporcionam benefícios à nossa sociedade enquanto retêm relativamente pouco para si?”. A interrogação traduz o espanto com o espírito cívico que sacodia a apatia social. Metodologicamente recendia a perspectiva liberal, centrada nos indivíduos, “para decodificar significados, sentimentos culturais e pontos de vista dos participantes nos protestos”, inclinando-se para a inevitável psicologização e sentimentalização das atividades dos militantes.

Na Terra brasilis, a classe média desfilava uma opção subordinada de classe. A foto do casal com camisas verde-amarelas, que conduzia um cão da raça spitz pela coleira, acompanhado da babá uniformizada para empurrar o carrinho de bebê, per se, elucida a pergunta sobre a essência dos levantes de 2013, 2015 e 2016. O desconforto não era com o sistema, mas com uma colocação inferior às expectativas na hierarquia de mando. O Instituto DataFolha (SP) e o Instituto Index (RS) trouxeram estatísticas similares: 40% recebia mais de dez salários mínimos e 47% motivou-se para os eventos pela luta anticorrupção. Destampava-se o modus operandi de financiamento das campanhas políticas, para chocar quem desconhecia a recorrente lógica materialista do poder.

Nos EUA, o movimento Occupy Wall Street (OWS, 2011) dividia a humanidade com o rótulo “We Are The 99%”, que opôs o universo de prejudicados com a debacle de 2008, causada pelas políticas de desregulamentação, a 1% dos beneficiários sistêmicos. Diante da narrativa triunfalista dos apologistas do livre mercado e do Estado mínimo, o acampamento dos insurretos trouxe a público a realidade da parcela de batalhadores que vive em situação de pobreza (menos de US$ 5,50 dólares por dia), o equivalente a quase 50% da população mundial (quase 4 bilhões de pessoas). Afora a indignação, a característica que delineou a manifestação foi a devoção à democracia participativa, com posições deliberadas junto aos eventuais circunstantes. Cidadãos de variada procedência socioeconômica, sem uma nítida identidade ideopolítica, apontavam as desigualdades vigentes.

O Occupy Wall Street, assim como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o seu equivalente urbano, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), são expressões simultâneas de subalternizados em pontos geográficos distantes. Já o neofascismo é o emblema de setores com extração na pequena burguesia e inspiração no hiperindividualismo pós-moderno. Para o historiador britânico E. P. Thompson, em A formação da classe operária inglesa: “A classe é definida enquanto os indivíduos vivem sua própria história e, ao final, esta é a sua única definição”. A luta contra os grilhões é coletiva, o avatar (“descida do céu à terra”) da consciência de classe é individual.

O elã emocional dos protestos “mescla a raiva ao ultraje moral”, conclui J. Jasper, com uma platitude. Informação que não revela o sentido dos movimentos, por abstrair a cosmovisão socioideológica que ampara os objetivos. Que os homens e mulheres cantam quando se divertem ou mesmo quando vão à guerra, é um truísmo. E daí? Na Espanha (1936) ou no Brasil (2022), importa se marcham nas fileiras da barbárie ou da civilização, em nome da dominação ou da emancipação.

A democracia tradicional está fundada na ideia de representação. Não obstante, dezenas de milhares de sugestões recebidas no programa antineofascista e antineoliberal, da “Frente Juntos pelo Brasil”, sinalizam o desejo de uma democracia participativa para que a cidadania ativa possa intervir no direcionamento do Estado, como sujeito da política em vez de objeto das finanças. A vitória que se delineia, em outubro, agiliza o parto da consciência nos conflitos do porvir com as muitas contribuições que cimentam, socialmente, os esforços para viabilizar a soberania nacional-popular.

Como escreveu Karl Marx, na terceira das Teses sobre Feuerbach (1845), “o próprio educador precisa ser educado”. A receptividade às proposições oriundas de fora dão prova da humildade e da maturidade dos protagonistas partidários, na corrida contra o obscurantismo e o negacionismo, ao se permitirem oxigenar no movimento real. Os partidos progressistas não são depositários da verdade absoluta. Não habitam redomas imunes à práxis da sociedade civil. Há espaço para todas e todos no campo de batalha. As manifestações, agora, abrem um novo capítulo para o povo brasileiro.

A palavra de ordem é: “organizar, conscientizar e combater”. O Brasil e a América Latina que queremos acena para a superação do colonialismo (racismo) e do patriarcado (sexismo) que, hoje, sustentam o capitalismo com suas perversas flexibilizações trabalhistas e brutais precarizações. O futuro está em jogo, em outubro. O capeta deixou claro, na sabatina em que os âncoras globais não questionaram o triunfalismo da política econômica em curso, realizada no Jornal Nacional, que não está disposto a sair do trono presidencial – “se as eleições não forem limpas” (sic).

Quem sabe não espera acontecer o segundo turno. E se prepara, desde agora, para garantir a posse do presidente Lula da Silva, e a prisão do terrorista oficial responsável pela barbárie social e política. A democracia e a participação cidadã estão batendo à porta da história: bem-vindas.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Afrânio Catani Celso Frederico Luciano Nascimento Osvaldo Coggiola Bruno Machado Maria Rita Kehl Berenice Bento Paulo Capel Narvai Luiz Carlos Bresser-Pereira André Márcio Neves Soares Marcelo Módolo Jorge Luiz Souto Maior Caio Bugiato Airton Paschoa Milton Pinheiro Eugênio Bucci Michael Roberts José Costa Júnior Vladimir Safatle Igor Felippe Santos João Adolfo Hansen Chico Whitaker André Singer Andrés del Río Francisco Fernandes Ladeira Ricardo Fabbrini Gilberto Lopes Luiz Renato Martins Marilia Pacheco Fiorillo Tales Ab'Sáber Gerson Almeida Dennis Oliveira Salem Nasser João Feres Júnior Walnice Nogueira Galvão Alexandre de Lima Castro Tranjan Rafael R. Ioris Antonino Infranca Boaventura de Sousa Santos Thomas Piketty Daniel Brazil Jorge Branco Flávio R. Kothe Luis Felipe Miguel Leonardo Avritzer Tarso Genro Otaviano Helene Jean Marc Von Der Weid Henri Acselrad Slavoj Žižek Ricardo Antunes Paulo Nogueira Batista Jr Celso Favaretto Priscila Figueiredo Mário Maestri Mariarosaria Fabris Sandra Bitencourt Vinício Carrilho Martinez Remy José Fontana Marcelo Guimarães Lima Heraldo Campos José Micaelson Lacerda Morais Fábio Konder Comparato Claudio Katz João Carlos Loebens Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Eduardo Soares Marcos Aurélio da Silva Juarez Guimarães Carlos Tautz Gilberto Maringoni Flávio Aguiar Luiz Roberto Alves Anselm Jappe Paulo Martins Vanderlei Tenório Yuri Martins-Fontes Ronald León Núñez Ronald Rocha Eduardo Borges José Raimundo Trindade Bruno Fabricio Alcebino da Silva Bento Prado Jr. Sergio Amadeu da Silveira Daniel Costa Eugênio Trivinho João Sette Whitaker Ferreira Luiz Werneck Vianna Alexandre Juliete Rosa Leda Maria Paulani Manchetômetro Luís Fernando Vitagliano Ari Marcelo Solon Paulo Sérgio Pinheiro Elias Jabbour Francisco de Oliveira Barros Júnior Ricardo Abramovay Jean Pierre Chauvin Bernardo Ricupero Tadeu Valadares Rubens Pinto Lyra Valerio Arcary Lincoln Secco Eleonora Albano João Paulo Ayub Fonseca Atilio A. Boron Érico Andrade Lorenzo Vitral Rodrigo de Faria Fernão Pessoa Ramos Alysson Leandro Mascaro Antonio Martins Fernando Nogueira da Costa José Luís Fiori Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre Aragão de Albuquerque Liszt Vieira Benicio Viero Schmidt Marilena Chauí Marcos Silva Gabriel Cohn Renato Dagnino Lucas Fiaschetti Estevez Eliziário Andrade Francisco Pereira de Farias Matheus Silveira de Souza José Machado Moita Neto Henry Burnett José Dirceu João Lanari Bo Denilson Cordeiro Eleutério F. S. Prado Annateresa Fabris Daniel Afonso da Silva Ronaldo Tadeu de Souza Samuel Kilsztajn Kátia Gerab Baggio Ladislau Dowbor Michel Goulart da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Boff Dênis de Moraes Antônio Sales Rios Neto João Carlos Salles Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leonardo Sacramento Julian Rodrigues Marjorie C. Marona Luiz Marques Michael Löwy Armando Boito Marcus Ianoni Chico Alencar José Geraldo Couto Andrew Korybko Manuel Domingos Neto Paulo Fernandes Silveira Carla Teixeira Ricardo Musse Luiz Bernardo Pericás

NOVAS PUBLICAÇÕES